Desenvolvimentismo clássico, Cepal-Furtado, Novo-desenvolvimentismo e o Brasil

Dizem que, um dia, perguntaram a Nelson Rodrigues, que tipo de conselho daria aos jovens brasileiros. Rodrigues respondeu, na lata: "envelheçam". 

Adoro essa frase, porque, a essa altura da vida, já não tenho paciência para ficar repetindo platitudes importadas sobre desenvolvimento econômico. A bem da verdade, gosto de voltar aos clássicos (Smith, Marx e Schumpeter; aqui usando o termo "clássicos" com certa liberdade) e aos desenvolvimentistas clássicos (de Lewis a Kaldor). Se pudesse resumir a lição desta última corrente sobre como se processa a transição do subdesenvolvimento para o desenvolvimento, diria que i) essa transição ocorre inicialmente pelo deslocamento de recursos (sobretudo trabalhadores) do setor agrícola tradicional (de baixa produtividade) para o setor industrial (de alta produtividade); e ii) se esse processo não for abortado por fenômenos deletérios como desindustrialização prematura, doença holandesa, etc etc (justamente o que ocorreu no Brasil após 1980), a indústria de transformação é que funciona como motor de crescimento (hoje em dia temos de agregar o ecossistema dos serviços de tecnologia digital), porque é ela a principal geradora e difusora de progresso tecnológico e, et pour cause, a disseminadora dos ganhos de produtividade para a economia como um todo. 

Então, não importa que as grandes multinacionais tenham desencadeado cadeias de valor fragmentadas na economia global - para elas, isso é relevante, porque concentram a maior parte dos gastos em P&D de projetos na matriz e terceirizam a produção para (também grandes) empresas nos paí­ses em desenvolvimento, sobretudo asiáticos (a Apple não produz nenhum produto da famí­lia Apple - i-pod, i-phone ou i-pad -, mas delega a outras empresas sob contratos de outsourcing). 

Mas o Brasil não é desenvolvido, logo não pode se dar a esse luxo. E é grande, logo, não vale a pena a estratégia de se subordinar a cadeias globais de valor, mas retomar uma polí­tica industrial e tecnológica em que parte das cadeias de valor possam ser restauradas no mercado doméstico. Claro, o que não for estratégico ou o custo de aprendizado tecnológico for muito elevado e arriscado, continue importando, ou seja, não é preciso violar completamente a teoria das vantagens comparativas ricardianas para desenhar um programa estratégico inteligente. 

Mas por que comecei o texto falando que deverí­amos construir uma teoria de desenvolvimento original para os interesses de longo prazo do povo brasileiro? Porque, como mostrou Celso Furtado, nem todas as teorias gerais podem ser mecanicamente adaptadas para explicar experiências de paí­ses que tem peculiaridades históricas distintas. Por exemplo: o modelo de Lewis é esplêndido e explica, parcialmente, muitas experiências de desenvolvimento de países retardatários, inclusive China: no iní­cio a oferta ilimitada de mão de obra permite manter salários baixos durante décadas, até que, a partir daí­, os salários reais médios da economia sejam determinados pelos salários do setor industrial (a China está nesse ponto agora). Mas o gênio furtadiano (em seu fundamental Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, de 1961) mostrou que isso não ocorreu inicialmente no Brasil: por causa da abolição tardia da escravidão, o país teve de lidar com o problema da escassez relativa de mão de obra na primeira metade do século XX, quando a indústria brasileira (não a industrialização) começou a engatinhar. Furtado mostrou que a oferta ilimitada só veio a ocorrer depois. E por que? Novamente, Furtado explicou e, creio, sua tese ajuda a entender por que o paí­s não conseguiu alcançar escalas industriais que justificassem o sucesso de indústrias estratégicas high-tech: como o desenvolvimento econômico ficou concentrado (desde os anos 1930 até o final da década de 1980) no eixo Sudeste-Sul, sobretudo, no eixo Rio-São Paulo-Minas, o "esquecimento" do Norte-Nordeste-Centro Oeste acabou não permitindo a integração econômica e social do paí­s e, consequentemente, a ampliação de um amplo mercado de consumo de massas. Diga-se de passagem que esse problema estrutural, embora com menor intensidade, ainda persiste no Brasil.

A cada 15 dias, temos feitos encontros de discussão virtual como intelectuais de São Paulo, e, no último, perguntei a Belluzzo: por que Celso Furtado ficou no ostracismo intelectual no Brasil depois que retornou do exí­lio? Refiro-me ao Furtado teórico, não ao da Formação Econômica do Brasil, obra que, esta sim, as escolas de economia utilizam ad nauseam nas disciplinas de Economia Brasileira (e, com razão, ela é fundamental para entender a formação do Brasil). Belluzzo não soube responder com precisão. E nem eu sei bem por que o Furtado teórico foi tão ignorado por essa plagas. Quero dizer, as escolas de economia no Brasil não conferem a Furtado o prestí­gio que ele deveria merecer em seu esforço de construir uma teoria de desenvolvimento endereçada aos interesses dos paí­ses latino-americanos. Algo que a Cepal conseguiu, merecidamente. Ok, Furtado esteve na Cepal, mas seu pensamento foi tão original que não o considero um cepalino: Furtado é Furtado.

Num trabalho recente em co-autoria com Lucilene Morandi, Eliane Araújo e Carmem Feijó ("Structural change and economic development in Brazil: 1950-2011". Structural Change and Economic Dynamics, Vol. 52, 2020, p.1-15), fiquei surpreso quando notei o movimento da composição setorial do emprego no Brasil desde 1950. Eu sempre pensei que a maior parte da mão de obra havia se deslocado preponderantemente da agricultura (inicialmente, devido aos argumentos de Lewis, depois, por causa da mecanização) para a indústria e serviços. E fiquei pasmo quando vi que os dados não foram nessa direção: o "excesso" de mão de obra foi quase de forma monotônica diretamente para o setor de serviços! E parte para os de baixa produtividade (comércio e varejo). O Brasil inverteu a lógica dos processos exitosos de desenvolvimento econômico. O gráfico pode ser visualizado no final deste texto.

Quem explica isso? Furtado, claro: como o Norte, Nordeste e Centro-Oeste não se integraram no processo de industrialização entre 1930 e 1980, o excedente da mão de obra ficou parte nessas próprias regiões, em atividades de subsistãncia ou nas atividades de baixa produtividade do setor de serviços (comércio e varejo); e parte migrou (expulsos pela mecanização do agrobusiness) para os centros urbanos do Sudeste em busca de oportunidades na indústria. Mas, diante da frustração, muitos foram também para os serviços de baixa produtividade ou para a informalidade! 

Parte desse processo de atraso econômico do Norte-Nordeste (o Centro Oeste comandou  a revolução agrícola) frente ao resto do Brasil foi revertida após a década de 1990, em resposta à "guerra fiscal", em que os governos dessas regiões decidiram alavancar investimentos industriais via concessão de incentivos fiscais. Mas, tudo isso foi feito de forma meio atabalhoada, sem planejamento econômico em coordenação com o governo central, o que poderia ter rendido menos assimetria e maiores benefí­cios dinâmicos.

Na situação atual de grande retrocesso da economia brasileira (essa regressão não é de agora, já vem se acentuando desde o iní­cio dos 1980), penso que será preciso a convergência de duas estratégias: i) uma polé­tica industrial gestada no poder executivo, em que se desenhe um programa de reindustrialização e avanço tecnológico do sistema produtivo nacional integrada ao objetivo de desenvolvimento regional. Por exemplo, os setores químico e farmacêutico oferecem enorme potencial de desenvolvimento no Brasil, que há décadas come mosca e não desenvolve vacinas e fármacos com tecnologias genuinamente nacionais para combater doenças tropicais a partir da fauna e flora amplamente disponível no paí­s; não é possí­vel pensar em tal estratégia sem a parceria dos governos do Norte, Nordeste e parte do Centro-Oeste;  e ii) maior esforço de coordenação da política industrial com a polí­tica macroeconômica. 

Quanto a esse último aspecto, caí­mos no novo-desenvolvimentismo, resultante do esforço de L.C. Bresser-Pereira (e outros) para construir uma teoria do desenvolvimento econômico (como fizera Furtado) que respeite os condicionamentos históricos das economias ditas emergentes, inclusive o Brasil: atualmente, o elevado grau de abertura ao movimento de capitais reduz demasiadamente a autonomia dos governos para manter os preços macroeconômicos-chave (juros reais e taxa de câmbio real) nos ní­veis "corretos" para que os sinais emitidos pelos incentivos da polí­tica industrial sejam confirmados pela (re) diversificação da estrutura industrial, pela expansão do produto doméstico e pelo aumento das exportações de bens manufaturados e serviços de maior sofisticação tecnológica. Esse problema está longe de ser resolvido no Brasil: apesar de os juros reais terem caído para níveis civilizados e a moeda estar em overshooting (i.e. subvalorizada até demais), o problema da armadilha dos juros altos e da moeda tendencialmente apreciada pode voltar  à baila tão logo o Brasil retome (quando será?) o crescimento econômico.