Caetano Veloso e os dois Andrés - artigo escrito por Caetano Veloso, publicado em O Globo de 29/01/2012
O GLOBO, 29/01/2012
Em suma, temos de admitir o fim do crescimento econômico tal como o conhecemos
André Lara Resende escreveu artigo extraordinário na revista “Valor Econômico”. A
matéria me foi enviada por André Nassif, um economista keynesiano e
desenvolvimentista que tem a paciência de dialogar com minha enorme ignorância na
matéria. A bem dizer, a ignorância não seria tão desconfortável se não fosse expressão
de incapacidade mental para o assunto. Fui um péssimo aluno de matemática e nunca
me responsabilizei por nenhum aspecto da minha própria vida econômica, que dirá das
questões referentes à riqueza das nações. Não tiv conta em banco sob meu próprio nome
antes de meu primeiro filho aprender a falar. Sempre que ouço conversas sobre preços,
dívidas, lucros ou salários, o tédio toma conta de mim. É como falar de literatura a um
jovem jogador de futebol que nunca leu um romance: ele tenderá a sentir sono e se
perguntará que interesse pode um tema desses despertar num mortal. Ou comentar a
Terceira Sinfonia de Brahms com João Cabral.
Mas, diferentemente de Cabral e do meu jovem craque, minha curiosidade e meu desejo
leonino de poder encarar todos os assuntos me levam a ser semiinarticulado em diversas
disciplinas. E indisciplinas. A economia é aquela de que me aproximo com o menor
grau de autenticidade.
Pois bem: Nassif não se aborrece com minha mistura de inaptidão e vaidade. Mas não
estou aqui para me depreciar. Não é só a empáfia que me faz querer entender um
mínimo sobre economia. É o desejo de saber o significado profundo dos atos e dos fatos
com que tenho de me haver. Mesmo se construo um aprendizado em palafitas com
passarelas quebradas; mesmo se, em alguns casos, apenas a familiaridade com um termo
venha me acudir e, em outros, uma nuvem de ideia geral paire sobre a imagem que faço
dos rumos do homem — ainda assim poderei ver mais áreas iluminadas, se faço o
esforço. Sei que seria melhor se eu me entregasse à minha vocação de incapaz de
economia e reservasse energia para tratar melhor as canções. Mas não sou assim
saudável. Nassif acredita que essa minha neurose pode contribuir para algum
esclarecimento. Com grande generosidade (talvez por, sendo economista, não se
entediar com música, antes pelo contrário), ele responde a minhas perguntas ingênuas e
presunçosas. E me envia artigos que ele supõe que poderão me interessar.
Assim, chegou aqui esse texto de André Lara. E Nassif não tem ideia do quanto me
interessou. Mas o fato é que o artigo falou direto com minha imaginação. Eu poderia
simplesmente recomendar sua leitura — tanto para especialistas quanto para leigos. Não
sou, repito, assim, saudável. Preciso dizer um pouco como recebi os arrazoados do
economista. Em primeiro lugar, o fato de ter sido um dos arquitetos do real me faz olhar
para ele com reverência e excitação. Depois, a propriedade do que ele diz em seu escrito
me fez reconhecer muito do que intuo mas não posso articular.
Da piada que ele leu num cartoon americano e conta ressaltando a pertinência (“País
viciado em bolhas busca desesperadamente uma nova bolha para investir”) à atenção
dada à constatação do teórico Paul Gilding de que “já passamos dos limites físicos do
planeta”, Resende apresenta uma mirada clara e corajosa do estado das coisas depois da
crise de 2008. Surpreende-me (um pouco) que economistas sofisticados como ele
possam falar como se não tivessem pensado antes que “seremos obrigados a reconhecer
o que, apesar das evidências, nos recusamos a ver: não há como viabilizar sete bilhões
de pessoas, com o padrão de consumo e as aspirações do mundo contemporâneo, nos
limites físicos da Terra”.
Em suma, temos de admitir o fim do crescimento econômico tal como o conhecemos.
Como não nos preparamos para uma economia estacionária, teremos de encarar uma
freada brusca. A transição será longa e conturbada. Resende observa que Gilding tem,
no longo prazo, uma expectativa otimista: com uma nova visão do que seja viver bem,
um número muito maior de pessoas poderá viver na terra de modo sustentável. (Mais
cedo no artigo, Resende prepara o leitor que desiste de ler quando se depara com
palavras como “sustentável”.)
Talvez o artigo tenha chegado a meu coração com calor porque ele se expande, para
além da economia, para os terrenos da antropologia e da filosofia. Não pude deixar de
lembrar as considerações de Lévi-Strauss a respeito da inviabilidade (e mesmo da
vergonha que representava a seus olhos, mesmo nos ano 1930, a poluição dos mares e
das terras em que o homem ocidental punha a pata) do crescimento populacional e
técnico arrogante, colocando o homem neolítico como o momento de percepção realista
do lugar que nossa espécie pode ocupar no planeta. Pensei também no contraste entre a
visão exposta pelo filho de Otto Lara (o saudosíssimo Otto, de tão iluminadoras quanto
divertidas conversas) e os textos que leio, com interesse especial, de Roberto
Mangabeira. Não que este não critique os modos como o keynesianismo é entendido e
adotado atualmente (claro que conheço “keynesianismo” dessas e de outras referências
indiretas), coisa que Resende faz também aqui. Mas a atenção dada à questão ecológica
(que os editores de “The Economist” valorizam) está ausente do programa para a
esquerda do livrinho de Unger. Suponho, então, que algo da visão mística do papel do
Brasil na salvação do mundo (que é parte dos meus sintomas) sustentaria algo que
compartilho com o professor de Harvard.