Os erros do Banco Central

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30mar23

 

Os erros do Banco Central

Visão míope do banco tem levado à dilapidação de considerável estoque de capital físico e humano

André Nassif

O regime de metas de inflação (RMI) foi instituído no Brasil, em 1999, quando o governo procurava deter a enorme fuga de capitais, maxidesvalorização cambial e disparada da inflação, na sequência do ataque especulativo contra o real. Adotar uma âncora monetária foi a resposta, correta, para evitar o retorno da inflação crônica. Embora conveniente à época, a manutenção desse regime hoje impõe sérios entraves ao crescimento econômico brasileiro.

O RMI tem raízes na tese monetarista de M. Friedman de que políticas monetárias expansionistas desancoram expectativas futuras de aumento de preços e aceleram a inflação. A tese foi refinada por R. Lucas com a hipótese das expectativas racionais: políticas monetárias expansionistas fazem com que os agentes antecipem o valor esperado de variáveis econômicas, como preços, juros e câmbio. Nada sabem sobre o futuro, mas comportam-se como se soubessem. Os agentes são capazes de antecipar a inflação, majorando preços no presente - a inflação de hoje reflete expectativas de maior inflação amanhã.

Esse arcabouço teórico reforça as justificativas para que bancos centrais sigam regras de política monetária e adotem metas de inflação. A mais conhecida é a regra de Taylor: a autoridade monetária se guia por uma função de reação em que a taxa de juros de curto prazo (nossa Selic) aumenta quando a inflação observada e/ou as expectativas de inflação superam a meta perseguida pelo Banco Central e o PIB efetivo é superior ao seu potencial (o hiato do produto). Na prática, o aumento da taxa básica só fará a inflação arrefecer se conseguir reduzir a demanda agregada (consumo e investimento). Para isso, é preciso que a taxa de juros real (a taxa nominal, descontada a inflação) supere a taxa de juros real de equilíbrio - ou taxa neutra, teórica e não observada, que é compatível com o equilíbrio de pleno emprego.

Como o Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central do Brasil tem manejado o RMI desde a crise global de 2008? Até as pedras da Faria Lima sabem que o peso concedido pelo BC ao hiato do produto tem sido, à exceção do período da pandemia, negligível. Quando o hiato do produto é negativo, sinal de que a economia opera com muita capacidade ociosa e desemprego elevado, o Copom prioriza a suposta ancoragem de expectativas da inflação futura em direção à meta anual de inflação determinada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

É curioso que as expectativas são captadas pelas respostas a questionário (o "Focus") que o BC apresenta aos consultores econômicos das instituições financeiras, e não aos formadores de preços. De todo modo, a questão nem é tanto de ordem empírica ou moral: o problema é teórico. Mesmo que o questionário incluísse famílias, empresas, sindicatos etc., o BC, ao conferir peso quase exclusivo à discrepância entre as expectativas e a meta de inflação, em detrimento do comportamento corrente de variáveis econômicas relevantes, como o PIB efetivo, desemprego e inflação observada, prefere depositar fé cega na capacidade de os agentes anteverem o valor efetivo das variáveis econômicas. E pior: o BC crê que os agentes são munidos de expectativas racionais.

Essa visão míope de política monetária tem levado o BC a cometer repetidos erros, cujas consequências têm sido a dilapidação de considerável estoque de capital físico e humano que dificilmente será recuperado no médio prazo. Podem-se identificar pelo menos dois erros no manejo da política monetária desde a adoção do RMI, ambos decorrentes do excessivo peso das expectativas de inflação em detrimento do comportamento corrente de indicadores relevantes do setor real.

BC dá peso exclusivo à discrepância entre meta e expectativas, em detrimento de variáveis econômicas relevantes O primeiro ocorreu após a eclosão da crise global de 2008, quando o BC estava sob a presidência de Henrique Meirelles. Comparem-se, por exemplo, as respostas do Banco Central da Índia e do Brasil no trimestre que se seguiu à quebra do Lehman Brothers, em setembro de 2008. Embora a Índia enfrentasse inflação acumulada maior e mais acelerada que o Brasil, seu Banco Central reduziu significativamente a taxa básica de juros; já o Copom manteve a Selic inalterada em 13,75% ao ano até janeiro de 2009, então equivalente a uma taxa de juros real de 8% ao ano, em que pese a queda dramática da produção industrial e das exportações ao longo do último trimestre de 2008. O BC reforçou os impactos recessivos do crash global, representados pela contração de 0,2% do PIB no ano seguinte, que só não foi maior por causa das medidas contracíclicas da política fiscal brasileira. As respostas contracíclicas tempestivas da Índia fizeram com que o país escapasse da recessão global.

O segundo erro associa-se à atual política monetária do BC, sob gestão de Roberto Campos Neto. Alegando premência de ancorar expectativas futuras de inflação, desde 2021 o Copom aumentou muito, e rapidamente, a taxa Selic (de 2% para 13,75%) - algo sem equivalência em outros países. Além de contraproducente, posto que a infla- ção atual no Brasil e no mundo resulta principalmente de choques de oferta, não de excesso de demanda, a gestão monetária do BC mostra-se pouco sensível aos impactos adversos de tamanho aperto monetário não apenas sobre o emprego e a estabilidade financeira, mas também sobre a trajetória da dívida pública.

O aumento expressivo da taxa básica amplia as despesas do Tesouro com pagamento de juros, sobretudo por conta dos títulos públicos atrelados à Selic (quase 40% do estoque total). Ao fazer crescer a relação dívida bruta/PIB, a política monetária contracionista deteriora ainda mais as próprias expectativas. Com isso, a autoridade monetária reverte a suposta causalidade expectativas-juros para juros-expectativas, já que é a piora das expectativas, alimentada pelo próprio BC, que passa a depender das taxas de juros, e não o contrário.

O mercado financeiro vislumbra maior risco fiscal quando observa crescimento da relação dívida/PIB. Entretanto, ao intensificar a dosagem dos juros, o BC tem sido parcialmente responsável não apenas pela trajetória ascendente de endividamento público, como também pela deterioração das expectativas.

O RMI tem sido objeto de crítica também no exterior, justamente por tratar a inflação como fenômeno exclusivamente monetário, sempre associado a excesso de demanda agregada, o que não coincide com o diagnóstico atual. Enquanto não se debate abertamente qual regime de política monetária o Brasil deveria adotar em substituição ao RMI, mais urgente é que o Copom dê início à queda imediata da taxa Selic.

Paralelamente, é importante que o governo, via CMN, proponha alteração radical do modus operandi do RMI - hoje extremamente rígido - alinhando-o à experiência de diversos países em desenvolvimento que adotam regimes bem mais flexíveis. Além da ampliação da meta inflacionária para nível compatível com as condições estruturais da economia (em torno de 4% ao ano, dado nosso elevado grau de indexação), caberia ampliar o horizonte de persecução para o médio prazo (entre 3 e 5 anos). No entanto, com a decisão, em 22 de março corrente, de manter a taxa básica de juros inalterada em 13,75% ao ano (7,7% em termos reais, a maior do mundo), o BC confirma que continuará replicando erros que, dessa vez, poderão levar o país à recessão e maior desemprego.

André Nassif é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), economista aposentado do BNDES e autor de "Desenvolvimento e Estagnação: o Debate entre Desenvolvimentistas e Liberais Neoclássicos", Editora Contracorrente (no prelo). E-mail: andrenassif27@gmail.com