Resumo

Em defesa da política industrial

É preciso haver coordenação com o regime macroeconômico

Por André Nassif

A ideia de “política industrial” tem sido objeto de polêmica no Brasil, porque requer a adoção de instrumentos de intervenção governamental (impostos de importação, subsídios à produção, compras do governo, níveis mínimos de conteúdo local etc) destinados a privilegiar setores, inclusive fora do setor manufatureiro, com potencial de criar e difundir progresso técnico. Trata-se de dar sustentação ao avanço da produtividade e do desenvolvimento econômico.

Para os economistas liberais, porém, a melhor estratégia é deixar que a livre flutuação de preços relativos promova a alocação dos recursos produtivos para os setores de menor custo de oportunidade. Essa visão é estática, pressupõe que o desenvolvimento advém do livre jogo das forças de mercado e da alocação ótima dos fatores de produção.

Sob essa ótica, a intervenção do Estado somente se justificaria quando fosse necessária a correção de eventuais "falhas de mercado" - na pressuposição de que os mercados funcionam em concorrência perfeita. Trata-se de um argumento inconsistente, porque os sistemas capitalistas contemporâneos, longe disso, são dominados pelo poder dos oligopólios.

Uma política industrial é necessária por razões evidentes. Países onde a alocação de recursos é guiada predominantemente pelo livre mercado tendem a aprofundar a especialização em bens e serviços que refletem suas vantagens comparativas naturais. Se esses países forem abundantes em recursos naturais, a dominância de estratégias liberais favorecerá a continuidade da especialização em produtos primários e commodities industriais, como o Brasil.

Além disso, não há qualquer evidência, no passado ou no presente, de nação que tenha logrado progresso econômico sob laissez-faire e livre comércio incondicional, nem que tenha conseguido atingir alto padrão de vida com uma estrutura produtiva concentrada em commodities.

Pode-se comprovar, sim, que o desenvolvimento depende, ontem e hoje, da industrialização. Afinal, a indústria de transformação, que responde por cerca de 60% das despesas de P&D no mundo, é a principal fonte geradora e irradiadora de progresso técnico na economia. É ela que comanda o ritmo de produtividade das economias no longo prazo.

O fato incontestável de países desenvolvidos e em desenvolvimento relevantes na economia global recorrerem a programas ambiciosos de política industrial na atualidade, com ênfase na integração entre o setor manufatureiro e os serviços high tech, demonstra o atraso do debate brasileiro nessa matéria.

O Brasil está submetido a um dos mais violentos processos de desindustrialização prematura, ou seja, a retração do valor adicionado relativo do setor manufatureiro no PIB se iniciou antes que a indústria brasileira tivesse atingido maturidade tecnológica. A participação do setor no PIB, que havia atingido 21,4% em 1976, veio caindo desde então, até recuar para apenas 11,9% em 2020. O baixo dinamismo industrial ajuda a explicar o excepcional avanço de produtos primários nas exportações totais, de 17,6% para 45,1% entre 1990 e 2020, e a ampliação da dependência externa de produtos manufaturados, que, em 2020, atingiu 91,8% do total importado.

Consequentemente, a reduzida capacidade para gerar empregos qualificados e o elevado percentual de participação do emprego informal no total do emprego (quase 50%!) expõem um país com um dos mais elevados índices de desigualdade social no mundo.

Qual deverá ser o papel do Estado e da política industrial no século XXI? Serão necessários mecanismos para promover a inovação e o progresso técnico. Instrumentos para corrigir "falhas de mercado" não são suficientes para dar conta dos desafios do mundo atual. A economia global transitará para estruturas produtivas com tecnologias intensivas em baixa emissão de dióxido de carbono no decorrer do século. O Brasil se defronta com uma gigantesca janela de oportunidade para introduzir tecnologias verdes em diversos setores num momento histórico em que as condições iniciais zeram o jogo para a maioria dos países.

Em artigo acadêmico, Paulo Morceiro e eu (1) propusemos uma política industrial em que instrumentos horizontais, transversais e verticais se encaixam e entrecruzam com os objetivos de promover inovações em setores potencialmente estratégicos, desenvolver tecnologias verdes, incorporar tecnologias digitais, fomentar a infraestrutura física e humana, reduzir os desequilíbrios sociais e regionais e viabilizar a reindustrialização. Esta não deve ser entendida como mera atualização tecnológica das cadeias produtivas existentes, mas, principalmente, como oportunidade estratégica de propiciar saltos tecnológicos com base nas novas tecnologias emergentes (verde e digital).

Os críticos costumam repetir o mantra de que as políticas industriais aplicadas entre 2003 e 2014 fracassaram em razão da ausência de seletividade e excesso de subsídios, quando não se apegam à ideia vaga de que intervenções do Estado estão fadadas ao malogro. No entanto, à luz da experiência internacional, políticas industriais somente são bem-sucedidas se, além de haver exigências de performance das empresas que recebam incentivos públicos, esses requisitos forem integrados às demais políticas públicas, sobretudo à política macroeconômica.

No período assinalado, porém, os estímulos governamentais foram parcial ou totalmente anulados por juros reais muito elevados e pela sobrevalorização cambial. Ignorou-se, portanto, o princípio de que incentivos somente resultam em investimentos produtivos se o regime macroeconômico estiver ancorado em instrumentos cujos objetivos almejem não somente a estabilidade de preços, mas também o crescimento. Em suma, é preciso haver coordenação entre a política industrial e o regime macroeconômico. Para isso, os policy-makers brasileiros deveriam se inspirar em Keynes, para quem a política macroeconômica de curto prazo exerce efeitos permanentes (positivos ou não) na economia, já que, no longo prazo, estaremos todos mortos.

(1) Nassif, A. e Morceiro, P. "Industrial policy for prematurely deindustrialized economies after the Covid-1 9 pandemic crisis: Integrating economic, social, and environmental goals with policy proposals for Brazil. TD UFF 351, nov/2021.

 

André Nassif é professor do departamento de Economia da UFF e economista aposentado do BNDES. E-mail: andrenassif27@gmail.com

Autor

Valor Econômico





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