Resumo

https://valor.globo.com/opiniao/coluna/o-bndes-no-seculo-xxi.ghtml

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) vem perdendo relevância no financiamento de investimentos estratégicos desde 2018, quando os custos das suas principais linhas de crédito passaram a ser pautados por juros determinados pelo mercado – pela Taxa de Longo Prazo (TLP), em substituição à Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), que embutia subsídio implícito. No entanto, seu papel na oferta de recursos de longo prazo, em montante e condições que atendam à agenda social (desenvolvimento regional e redução de desigualdades) e também estimulem investimentos em atividades estratégicas (infraestrutura, transição energética e economia digital), será crucial para que o Brasil aproveite oportunidades que se vislumbram, agora e no futuro.

Em texto para discussão preparado para o Núcleo de Economia Política do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), procurei analisar o papel do BNDES no século XXI. Por limitação de espaço, vou me ater aos problemas referentes aos custos de financiamento e a fontes adicionais de recursos para a instituição. Como não há respostas simples para problemas complexos, recorro à teoria econômica.

A ideia da TLP vincula-se à hipótese da teoria liberal neoclássica de que, sob laissez faire, os mercados financeiros alocam poupanças para os demandantes de empréstimos da forma mais eficiente possível, produzindo taxas de juros reais socialmente ótimas. Mecanismos que gerem distúrbios no mercado de crédito, como o crédito direcionado de bancos públicos, taxas subsidiadas etc., supostamente resultam em taxas de juros reais subótimas. Se o mercado gerar taxas de juros reais muito elevadas, será melhor deixar que os próprios fundamentos econômicos restaurem as condições ideais. É o domínio do laissez faire, laissez passer.

Contudo, mesmo neoclássicos, como Joseph Stiglitz, rejeitam a hipótese dos mercados eficientes, alegando que falhas no mercado de capitais, como concorrência imperfeita e assimetria de informação, fazem com que os bancos privados, míopes quanto à capacidade de calcular o risco do tomador, racionem crédito e/ou fixem tetos homogêneos para os juros. Assim, a oferta insuficiente de crédito e taxas anormalmente superiores às que reflitam os fundamentos ótimos do mercado justificariam a oferta complementar de crédito de bancos estatais para minimização das “falhas de mercado”.

A explicação keynesiana para a alocação subótima de crédito de longo prazo nada tem a ver com as hipóteses dos mercados eficientes ou das falhas de mercado. A principal razão está relacionada à incerteza radical (isto é, não mensurável através de cálculos probabilísticos de risco futuro) associada a projetos de investimento de longo prazo, como infraestrutura e inovações tecnológicas. Nos países em desenvolvimento, em face do maior grau de incerteza e risco, dificilmente o sistema financeiro privado alocará crédito de longo prazo na magnitude suficiente para sustentar taxas de investimento adequadas para promover a acumulação de capital, o avanço da produtividade e o desenvolvimento econômico. O papel crucial de bancos de desenvolvimento, como o BNDES, continua sendo não apenas compensar a escassez relativa de crédito de longo prazo, mas também compartilhar riscos associados a investimentos de longa maturação e/ou em projetos de inovação, notadamente os que envolvem tecnologias de caráter disruptivo, que exigem capital “paciente”.

O BNDES deveria operar, então, com quatro tipos de taxas de juros: taxas que reflitam (não necessariamente por completo) as condições de mercado; taxas subsidiadas; operações totalmente subsidiadas (a fundo perdido); e encargos baseados em cestas de moedas, em operações cujos recursos tenham sido captados em moeda estrangeira.

O primeiro caso refere-se ao financiamento de grandes empresas que demandem recursos para projetos não estratégicos. O governo deveria propor uma taxa alternativa à TLP e/ou um fator redutor da própria TLP, cujos níveis têm sido proibitivos aos investimentos produtivos. A TLP de janeiro de 2023 já atingia 5,93% (contra 2,70% em janeiro de 2018, na ocasião dos primeiros contratos). O IPCA acumulado em 12 meses, de, aproximadamente, 5,79% faz com que o custo nominal do financiamento no início dos contratos, atualmente, fique próximo a 11,72%, sobre os quais ainda incidem spreads para cobrir custos operacionais da instituição e, principalmente, o risco de crédito do tomador. Contam-se nos dedos os setores que obtêm taxas nominais de retorno sobre o capital investido iguais ou acima desse percentual.  

No caso de projetos estratégicos de longa maturação e elevada incerteza futura, notadamente os de infraestrutura, inovações tecnológicas e incorporação de tecnologias associadas à economia verde e à sustentabilidade ambiental, a taxa de juros deveria ser determinada pelo governo em moldes tais que, ainda que não repliquem os da antiga TJLP, propiciem custos de financiamento inferiores às taxas de retorno esperadas sobre o capital investido. Empréstimos com subsídios diretos do Tesouro deveriam ser evitados, sendo sua concessão restrita a casos muito específicos (por exemplo, financiamento a inovações relacionadas ao sistema de saúde e projetos ambientalmente sustentáveis), mas, ainda assim, com justificativas precisas, valores transparentes e previstos no orçamento público. Empréstimos totalmente subsidiados (a fundo perdido) só deveriam ser concedidos em caráter excepcional (por exemplo, para investimentos em inovações tecnológicas de micro, pequenas e médias empresas e startups).

Para dar conta de atribuições assim configuradas, o BNDES precisará encontrar fontes diversificadas de financiamento. Minhas principais sugestões são: i) introduzir formas adicionais de captação de recursos no âmbito da reforma tributária, de modo a proporcionar fontes mais perenes para a composição do passivo do banco; ii) buscar recursos, em moeda estrangeira, em instituições multilaterais ou regionais, bem como em bancos governamentais do exterior; iii) estruturar projetos de investimento para descarbonização em parceria com empresas privadas, públicas ou entidades da federação, com o objetivo de acessar recursos financeiros externos.

Em suma, com maior ritmo de crescimento econômico, não há razão para temer que o BNDES expulse (crowd out), mas deve-se esperar que atraia e amplie (crowd in) o mercado de financiamento privado brasileiro. O enorme atraso da infraestrutura física e social do país, além do ritmo lento de crescimento da produtividade nas últimas décadas, indicam que não faltam oportunidades para a atuação de bancos públicos e privados na superação dessas deficiências. É onde o BNDES poderá ter um papel de natural relevância.



André Nassif é professor do Departamento de Economia da Universidade Federal Fluminense (UFF), economista aposentado do BNDES e autor de “Desenvolvimento e Estagnação: o Debate entre Desenvolvimentistas e Liberais Neoclássicos”, Editora Contracorrente (no prelo). E-mail: andrenassif27@gmail.com. Uma versão completa do artigo está disponível no website do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), https://www.cebri.org/br/doc/306/o-bndes-no-seculo-xxi.

 

 

 


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Valor Econômico





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